Nas décadas de 50 e 60 do século passado, Coreaú celebrava as datas cívicas nacionais e outras guardadas pela tradição. Naqueles tempos, em que o Educandário, depois, transformado no Ginásio Nossa Senhora da Piedade era o centro dos grandes empreendimentos culturais, o Grêmio Literário Padre Benedito promovia as sessões lítero-musicais para comemorar as magnas datas que o calendário apontava, dentre elas o dia 21 de abril, dedicada à figura central da inconfidência mineira o Tiradentes, que sonhava libertar o Brasil do jugo português.Com o intuito de homenagear a memória desse grande herói, trago à baila trechos de uma crônica alusiva ao mártir da independência nacional o alferes Joaquim José da Silva Xavier, escrita pelo maior dos literatos brasileiros, o escritor Joaquim Maria Machado de Assis, in “A semana”,originalmente publicada na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, de 24/04/1892 a 11/11/1900. A transcrição abaixo tem como fonte - Obra Completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994, disponível em http://machado.mec.gov.br:
“24 de abril 1892
Na segunda feira da semana que findou, acordei cedo, (...).
Para não ir mais longe, Tiradentes. Aqui está um exemplo. Tivemos esta semana o centenário do grande mártir. A prisão do heróico alferes é das que devem ser comemoradas por todos os filhos deste país, se há nele patriotismo, ou se esse patriotismo é outra coisa mais que um simples motivo de palavras grossas e rotundas. A capital portou-se bem. Dos estados estão vindo boas notícias. O instinto popular, de acordo com o exame da razão, fez da figura do alferes Xavier o principal dos Inconfidentes, e colocou os seus parceiros a meia ração da glória. Merecem, decerto, a nossa estimação aqueles outros; eram patriotas. Mas o que se ofereceu a carregar com os pecados de Israel, o que chorou de alegria quando viu comutada a pena de morte dos seus companheiros, pena que só ia ser executada nele, o enforcado, o esquartejado, o decapitado, esse tem de receber o prêmio na proporção do martírio, e ganhar por todos, visto que pagou por todos.
Um dos oradores do dia 21 observou que se a Inconfidência tem vencido, os cargos iam para os outros conjurados, não para o alferes. Pois não é muito que, não tendo vencido, a história lhe dê a principal cadeira. A distribuição é justa. Os outros têm ainda um belo papel; formam, em torno de Tiradentes, um coro leitor. Escutai a linguagem compassiva das ninfas, escutai os gritos terríveis, quando o grande titão é envolvido na conflagração geral das coisas. Mas, principalmente, ouvi as palavras de Prometeu narrando os seus crimes às ninfas amadas: “Dei o fogo aos homens; esse mestre lhes ensinará todas as artes”. Foi o que nos fez Tiradentes.
Entretanto, o alferes Joaquim José tem ainda contra si uma coisa a alcunha. Há pessoas que o amam, que o admiram, patrióticas e humanas, mas que não podem tolerar esse nome de Tiradentes. Certamente que o tempo trará a familiaridade do nome e a harmonia das sílabas; imaginemos, porém, que o alferes tem podido galgar pela imaginação um século e despachar-se cirurgião-dentista. Era o mesmo herói, e o ofício era o mesmo; mas traria outra dignidade. Podia ser até que, com o tempo, viesse a perder a segunda parte, dentista, e quedar-se apenas cirurgião. (...).”
No meu entendimento, tanto a homenagem ao herói brasileiro quanto a evocação das reminiscências de um tempo áureo da velha Palma são pertinentes. Com a palavra os que entendem de tudo e muito mais, porque conhecem a gênese das coisas. Assim, é lícito destacar o que afirma Virgílio, in Georgica: “Felix qui potuit rerum cognoscere causas. Feliz daquele que pôde conhecer as causas das coisas.”Por último, assinalo: Coreaú precisa acordar e fazer ressurgir o gosto pela cultura. Os coreauenses que viveram em recuadas épocas tinham menos letras, mas valorizavam o ambiente cultural, a tradição e a honorabilidade. As notícias históricas insculpidas em documentos permitem que eu faça esta solene afirmação.Impelido pelo ardor patriótico, saúdo a brasilidade de tantos e a coreauensidade de poucos!
Fortaleza, 16 de abril de 2011Leonardo Pildas
Nas décadas de 50 e 60 do século passado, Coreaú celebrava as datas cívicas nacionais e outras guardadas pela tradição. Naqueles tempos, em que o Educandário, depois, transformado no Ginásio Nossa Senhora da Piedade era o centro dos grandes empreendimentos culturais, o Grêmio Literário Padre Benedito promovia as sessões lítero-musicais para comemorar as magnas datas que o calendário apontava, dentre elas o dia 21 de abril, dedicada à figura central da inconfidência mineira o Tiradentes, que sonhava libertar o Brasil do jugo português.
Com o intuito de homenagear a memória desse grande herói, trago à baila trechos de uma crônica alusiva ao mártir da independência nacional o alferes Joaquim José da Silva Xavier, escrita pelo maior dos literatos brasileiros, o escritor Joaquim Maria Machado de Assis, in “A semana”,originalmente publicada na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, de 24/04/1892 a 11/11/1900. A transcrição abaixo tem como fonte - Obra Completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994, disponível em http://machado.mec.gov.br:
“24 de abril 1892
Na segunda feira da semana que findou, acordei cedo, (...).
Para não ir mais longe, Tiradentes. Aqui está um exemplo. Tivemos esta semana o centenário do grande mártir. A prisão do heróico alferes é das que devem ser comemoradas por todos os filhos deste país, se há nele patriotismo, ou se esse patriotismo é outra coisa mais que um simples motivo de palavras grossas e rotundas. A capital portou-se bem. Dos estados estão vindo boas notícias. O instinto popular, de acordo com o exame da razão, fez da figura do alferes Xavier o principal dos Inconfidentes, e colocou os seus parceiros a meia ração da glória. Merecem, decerto, a nossa estimação aqueles outros; eram patriotas. Mas o que se ofereceu a carregar com os pecados de Israel, o que chorou de alegria quando viu comutada a pena de morte dos seus companheiros, pena que só ia ser executada nele, o enforcado, o esquartejado, o decapitado, esse tem de receber o prêmio na proporção do martírio, e ganhar por todos, visto que pagou por todos.
Um dos oradores do dia 21 observou que se a Inconfidência tem vencido, os cargos iam para os outros conjurados, não para o alferes. Pois não é muito que, não tendo vencido, a história lhe dê a principal cadeira. A distribuição é justa. Os outros têm ainda um belo papel; formam, em torno de Tiradentes, um coro leitor. Escutai a linguagem compassiva das ninfas, escutai os gritos terríveis, quando o grande titão é envolvido na conflagração geral das coisas. Mas, principalmente, ouvi as palavras de Prometeu narrando os seus crimes às ninfas amadas: “Dei o fogo aos homens; esse mestre lhes ensinará todas as artes”. Foi o que nos fez Tiradentes.
Entretanto, o alferes Joaquim José tem ainda contra si uma coisa a alcunha. Há pessoas que o amam, que o admiram, patrióticas e humanas, mas que não podem tolerar esse nome de Tiradentes. Certamente que o tempo trará a familiaridade do nome e a harmonia das sílabas; imaginemos, porém, que o alferes tem podido galgar pela imaginação um século e despachar-se cirurgião-dentista. Era o mesmo herói, e o ofício era o mesmo; mas traria outra dignidade. Podia ser até que, com o tempo, viesse a perder a segunda parte, dentista, e quedar-se apenas cirurgião. (...).”
No meu entendimento, tanto a homenagem ao herói brasileiro quanto a evocação das reminiscências de um tempo áureo da velha Palma são pertinentes. Com a palavra os que entendem de tudo e muito mais, porque conhecem a gênese das coisas. Assim, é lícito destacar o que afirma Virgílio, in Georgica: “Felix qui potuit rerum cognoscere causas. Feliz daquele que pôde conhecer as causas das coisas.”
Por último, assinalo: Coreaú precisa acordar e fazer ressurgir o gosto pela cultura. Os coreauenses que viveram em recuadas épocas tinham menos letras, mas valorizavam o ambiente cultural, a tradição e a honorabilidade. As notícias históricas insculpidas em documentos permitem que eu faça esta solene afirmação.
Impelido pelo ardor patriótico, saúdo a brasilidade de tantos e a coreauensidade de poucos!
Fortaleza, 16 de abril de 2011
Leonardo Pildas