A unanimidade pró-gay no STF (Supremo Tribunal Federal) constrange o Congresso. Foi uma vitória histórica, literalmente por 10 a zero, isto é, 10 para os gays e zero para os setores conservadores. O Congresso deixou de legislar sobre a questão, optando por não enfrentar o problema que lhe batia à porta, e acaba de ver sua omissão ensaiada ser superada por outro poder.
Vem aí uma forte reação dos setores contrariados com a decisão, que iguala direitos entre casais hetero e homossexuais. No Congresso, não faltarão vozes a contestar o fato de o Supremo supostamente “legislar” no lugar do Congresso.
O Tribunal nada mais fez que exercer a sua tarefa original: a de interpretar, proteger e fazer aplicar a Constituição. Assim, a partir de agora, quando for avocado o artigo 226 da carta constitucional, que define a união estável como sendo aquela entre o homem e a mulher, o texto não mais excluirá os casais formados por pessoas do mesmo sexo. O Supremo ampliou sua interpretação para incluir e proteger uma camada da população discriminada pela opção sexual – o que é proibido pela mesma Constituição.
Fez-se pelo caminho da Justiça, o que não foi feito pelos representantes do povo, pelo instrumento do voto. E não é a primeira vez. O que mostra que o Congresso, ou está a reboque do Executivo, ou é atropelado pela realidade que vai ao Judiciário cobrar seu reconhecimento.
Um parlamento fraco, usurpado de suas funções elementares, é sinal de preocupante de fragilidade do sistema democrático. Mas parece que o Congresso ainda não se deu conta disso.
Com o resultado, 112 direitos que até então eram exclusivos aos casais formados por homem e mulher poderão ser estendidos aos casais homossexuais, como comunhão de bens, pensão alimentícia, pensão do INSS, planos de saúde e herança. Mas como todos esses processos envolvem a Justiça, os casais homossexuais ainda terão de encarar os tribunais para fazer valer seus direitos, mas agora da mesma forma que casais heterossexuais.
No primeiro dia do julgamento, realizado na quarta-feira (4), o ministro Ayres Britto, relator dos processos, defendeu a garantia de uniões estáveis aos casais gays e disse que a preferência sexual de cada indivíduo não pode ser utilizada como argumento para se aplicar leis e direitos diferentes aos cidadãos.
O principal ponto do voto de Ayres Britto era a defesa de que o conceito de família não pode ser definido apenas com base no gênero das pessoas que formam o núcleo familiar.
- Não existe família pela metade, família de segunda classe. Casamento civil e união estável são distintos, mas os dois resultam na mesma coisa: a constituição de uma família. Não se pode alegar que os heteroafetivos perdem se os homoafetivos ganham.
Veja quais são os países onde há união gay Com a continuação do julgamento na quinta-feira (5), o ministro Luiz Fux iniciou a fase de votos. Recém-chegado ao STF, Fux seguiu a mesma linha de Ayres Britto. Ao contrário dos colegas, foi o único a fazer um voto no improviso, mas mostrou-se dono de uma retórica poucas vezes vista no plenário do Supremo.
Fux ressaltou que, se a homossexualidade é um traço da personalidade, isso significa que ela caracteriza a humanidade de determinadas pessoas. Para o ministro, as únicas razões para que casais homossexuais não possam constituir uma família são a intolerância e o preconceito, crimes vedados pela Constituição.
O ministro também foi o primeiro a inaugurar uma série de críticas ao Congresso Nacional por se abster da discussão sobre a legalização das relações entre pessoas do mesmo sexo. Segundo Fux, se o legislador não conseguiu cumprir com sua missão funcional, compete aos tribunais suprirem essa lacuna.
- O reconhecimento da união homoafetiva é uma travessia que o legislador não quis fazer, mas que esta Suprema Corte sinalizou que fará.
Violência
Cármen Lúcia baseou sua defesa no cumprimento do direito à liberdade, cláusula pétrea da Constituição. A ministra condenou os atos de violência contra gays, como os vistos recentemente em São Paulo, e afirmou que o Judiciário não pode fechar os olhos para a causa.
- Há direitos a serem concedidos, sim, pois há violências que acontecem por conta dessa ausência de direito. Todas as formas de preconceito merecem repúdio, especialmente de juízes de direito.
O ministro Joaquim Barbosa, por sua vez, destacou que cabe ao Supremo “impedir o sufocamento, o desprezo e a discriminação dura e pura de grupos minoritários pela maioria estabelecida”. De acordo com ele, o princípio da dignidade humana pressupõe a “noção de que todos, sem exceção, têm direito a igual consideração”.
Ellen Gracie ressaltou que o reconhecimento de direitos aos casais homossexuais coloca o Brasil entre os países mais avançados do mundo.
- Uma sociedade decente é uma sociedade que não humilha seus integrantes. O tribunal lhes restitui o respeito que merecem, reconhece seus direitos, restaura sua dignidade, afirma sua identidade e restaura sua liberdade.
O ministro Marco Aurélio Mello também resgatou a violência contra os homossexuais e lembrou que, anualmente, cerca de cem gays são assassinados no Brasil por conta de sua orientação sexual. O ministro disse que o reconhecimento de direitos civis a parceiros do mesmo sexo fortalece o Estado democrático de direito.
- O Brasil está vencendo a luta desumana contra o preconceito. O Estado existe para auxiliar os indivíduos na realização dos respectivos projetos de vida, não impedir. É obrigação constitucional do Estado reconhecer o direito familiar e a finalidade jurídica das uniões homoafetivas.
Religião
O decano do STF, Celso de Mello, buscou separar a religião de direitos que devem ser garantidos pelo Estado. O ministro afirmou que nenhum cidadão pode ser privado de seus direitos, sob pena de estar inserido em um regime de leis “arbitrárias e autoritárias”.
- Os homossexuais têm direito de receber a mesma proteção das leis e do sistema jurídico. Esse julgamento de hoje marcará a vida deste país e imprimirá novos rumos à causa da comunidade homossexual.
O julgamento foi encerrado com o voto do presidente do STF, Cezar Peluso. Mostrando-se reticente em relação à unanimidade da Corte, o ministro acabou concedendo que não poderia se eximir de condenar todas as formas de discriminação.
- Seria imperdoável que eu tentasse acrescentar alguma coisa, sobretudo em relação a essa postura consensual da Corte em relação à condenação de todas as formas de discriminação e contrárias não apenas ao nosso direito constitucional, mas à raça humana.
Divergências
Apesar de terem concordado com a maioria, os ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes levantaram divergências pontuais em relação ao voto de Ayres Britto.
Lewandowski, primeiro a não acompanhar integralmente o relator, reconheceu os direitos dos casais homossexuais, mas de forma um pouco mais restrita. De acordo com o ministro, os homossexuais têm os mesmos direitos dos casais convencionais que vivem em união estável, exceto aqueles típicos das relações entre um homem e uma mulher.
O ministro não explicitou quais são os direitos típicos de heterossexuais. Mas, por exemplo, pelo seu voto, pode-se supor que o casamento civil estaria proibido na união homoafetiva.
Lewandowski também registrou que a decisão deveria valer até que o Congresso Nacional regulasse o tema. O ministro resgatou as discussões da Assembleia Nacional Constituinte em torno do parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição.
A norma diz textualmente que a união estável se dá entre homem e mulher. O ministro mostrou, a partir das discussões, que isso foi uma opção clara do legislador. De acordo com Lewandowski, a decisão do STF ocupa o espaço do Congresso Nacional. Então, o preenchimento da lacuna teria de ser provisório.
Reconhecendo que a união homoafetiva é uma questão de estender os mesmos direitos concedidos ao restante da população, Gilmar Mendes mirou suas críticas ao Congresso Nacional.
- Estamos aqui falando de direitos constitucionais básicos. Estamos a falar de dignidade de indivíduos. Se o Judiciário é chamado para fazer algo que o setor político não faz, é óbvio que devemos dar uma resposta positiva, mas me limito a reconhecer a existência dessa união, por aplicação analógica do texto constitucional, sem me pronunciar sobre outros desdobramentos.
Casamento
A única dúvida que restou após o julgamento é sobre a figura do casamento. O parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição, que rege a união estável, dispõe que "para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento".
Como a decisão do STF foi no sentido de equiparar a união estável homoafetiva à heterossexual, em tese o casamento teria de ser estendido aos casais gays, como afirma a lei. A leitura, no entanto, ainda é confusa, como explica a advogada Sylvia Maria Mendonça do Amaral.
- O casamento exige registro civil e, às vezes, envolve uma aprovação religiosa, se assim decide o casal. Há toda uma formalidade que não existe na união estável. Mas isso ainda será fruto de muita discussão na Justiça.
Ações
O julgamento conjunto da Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 4277 e da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 132 começou na quarta-feira (4). A primeira ação, apresentada pela PGR (Procuradoria-Geral da República) em 2009, requisitava o reconhecimento da "união entre pessoas do mesmo sexo, como entidade familiar, desde que atendidos os requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher".
A segunda, proposta em 2008 pelo governo do Rio de Janeiro, tinha como objetivo garantir que funcionários estaduais, com relações homoafetivas estáveis, possam desfrutar de benefícios decorrentes de união estável heterossexual.
Dos 11 ministros do Supremo, apenas dez votaram, já que o ministro Antonio Dias Toffoli estava impedido de julgar o caso por ter atuado como advogado-geral da União nas ações, antes de assumir uma vaga no STF.